Plano Comfort, conversa d6434

O objetivo era só um pouco de silêncio depois de um dia exaustivo, mas captei a audiência de um namoro em viva-voz 123766

Danielle Blaskievicz
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Pixabay

O ar do outono finalmente chegou à terra das araucárias. Temperatura beeeem amena, chuvinha fraca. Curitiba sendo Curitiba, sem decepcionar nesse quesito. Era fim de tarde, trânsito parado, céu de chumbo e uma umidade digna de sapo na sauna. Eu só queria ir pra casa. Pedi um carro de aplicativo e tive que recorrer ao modelo “Comfort” – no preço, principalmente – porque os comuns estavam me ignorando com sucesso. Pelo menos eu teria ar-condicionado e a promessa de um mínimo de dignidade emocional.

Idealizei aqueles minutos de paz, em que eu não precisaria me preocupar com o sinal vermelho ou as buzinas do horário de rush. Logo que entrei no veículo, o rapaz, todo prestativo, avisou que estava em uma ligação – com fones de ouvido –, mas que era pra eu ficar bem à vontade.

Apesar de ser contra as regras de trânsito, achei que seria algo rápido e ok. Seguimos. Porém, foi o verdadeiro conto do vigário. Não era uma ligação qualquer, aquelas de “oi” rapidinho só pra resolver algo pontual. Era “a ligação”. Do outro lado da linha, a namorada. Dali em diante, fui obrigada a acompanhar o bate-papo romântico transmitido com paixão. Parecia que eu estava dentro de um episódio ao vivo do “Namoro em Frequência AM”.

Pra mim, o diálogo era imaginário, uma vez que eu só ouvia o cidadão. As falas dela, eu deduzia, o que me colocou numa posição curiosa de ter que montar a personagem da namorada a partir das respostas dele.

Na minha cabeça, uma moça de 20 e poucos anos, tímida, daquelas que riem com a mão sobre a boca, voz doce, apaixonada e paciente no início de um relacionamento. Ele, do tipo grudento que faz de tudo pra não perder a garota.

Em meio ao engarrafamento, enquanto os faróis dos carros se misturavam ao lusco-fusco e o barulho dos motores rugia ao meu redor, descobri – a contragosto – várias curiosidades do casal apaixonado.

 – Ela tinha acabado de chegar do trabalho e faz aniversário no início de maio – taurina como eu, mas com certeza com o ascendente em câncer, pra curtir tanta fala mansa.

– Ele ainda não havia comprado o presente dela, mas o combo incluiria um jantarzinho especial ou uma tarde no parque de diversões. Tudo pago no cartão de crédito, assim que virasse a fatura. O grande desafio seria encarar os brinquedos mais ousados, como o kamikaze e o barco pirata. Devido à labirintite, em situações como essa, tudo o que estava na barriga dele se manifestava no ambiente externo, de forma líquida.

– Soube ainda que o carro que ele usava pra trabalhar era alugado, mas o moço estava satisfeito com o rendimento dos últimos dias. Em poucas horas, conseguiu R$ 240 de lucro – que ele projetava ampliar até o final da jornada – em trechos curtos que tinham somado 82 quilômetros. Porém, o veículo estava mais beberrão do que o tio dele nas festas de família, fazendo menos de 8 por litro.

Foram tantas informações preciosas durante a minha corrida Comfort que cheguei a achar que tinha escolhido o plano “ da vida alheia”, com direito a bastidores, making of e opinião formada sobre tudo.

Fiquei sabendo que, pro meu motorista do momento, “Curitiba é a cidade menos brasileira” do mapa. Pensei em tantas outras localidades onde a população costuma usar o “R” carregado – típico dos descendentes de imigrantes europeus – e se referir ao Brasil como se fosse outro país.

Antes mesmo que eu pudesse processar essa geografia emocional do meu piloto, pude constatar o que ele pensa sobre o conflito na Rússia, as decisões do Trump e a guerra que vem sendo travada no comércio internacional. Uma mistura de namoro apaixonado e podcast geopolítico, tudo em estéreo unilateral.

Enquanto eu contava os minutos pra chegar em casa, o trânsito não se mostrava nada colaborativo ou sensibilizado com a minha situação. Era quase uma sensação de claustrofobia automotiva.

Gosto de voltar pra casa, seja após uma viagem, um dia intenso ou aquelas baladas que, às 2h da madrugada, parecem intermináveis. Naquele dia, o retorno teve um sabor especial. Abri a porta, brinquei com a cachorra e fui direto pro sofá. A chuva continuava caindo lá fora, o mundo ainda falava alto, mas ali, no canto da sala, o silêncio me esperava.

Nada mais Comfort que isso.

Danielle Blaskievicz é jornalista, empresária e alguém que acredita que até o trânsito e a chuva têm boas histórias pra contar, basta prestar atenção.